Depois de
divagações e devaneios, inúmeras futilidades, eis que o jovem burguês pergunta o
que é a vida à primeira moça que vê passar na rua, como se pudesse enxergar além
de seus olhos... E ela responde:
‘- Bote a cara lá
fora onde o sol é cruel e turvo como a realidade. Venha conhecer o outro lado.
Encare que o mundo não é bom nem belo. Sinta nas costas a dor de amanhecer
vivo. Saiba o significado do passar dos dias para quem não tem como viver e
vive. O que significa a vida para quem nem consegue sobreviver. O valor da vida
para os esquecidos, marginalizados e dispensados por todos. O valor da vida
para quem se vê com uma vida sem valor. Olhe pela janela. Mais que clichê,
ainda há crianças morrendo de fome. Há velhos que carregam a vida [o peso da
vida] como algo negociável. Há jovens prostituindo suas manhãs em troca de pão
e droga, buscando a ilusão da esperança. Há jovens matando e roubando em busca
de preencher o vazio de seus dias. Ainda assim eles insistem em viver, idiotas!
Lá fora ainda existem pessoas que acreditam que o mundo pode ser um lugar
melhor. Não, não pode. Meu caro, a vida e o mundo são a mesma coisa. O mundo
toma forma lentamente a cada escolha da vida de alguém. O meu mundo e o seu
mundo são diferentes. Ainda assim estamos aqui. A vida que parece ser boa
sempre carrega em si uma mácula qualquer. E a vida que parece ser horrenda
carrega em si uma esperança infinita. Para o mundo ser melhor todos teríamos de
sofrer e neste mundo existem mais pessoas iguais a você que não sabem sofrer ao
menos um instante. O que fazer então?’
O jovem
atormentado não sabia o que pensar. Por qual motivo tal estranha falava tanto
dele sem ao menos o conhecer. Por que ela carregava tanta revolta e dor em seu
olhar? No meio de seus pensamentos, ecos de uma consciência distante, ela prosseguia:
‘-Acorde! Perceba
que seu mundo é supérfluo e superficial. Saiba ajudar, saiba ser livre. Não
viva entre máscaras. Seja humano, viva. E se esse discurso ainda te incomoda é
porque tenho razão ao te olhar assim, como um verme vestido de palhaço, cheio
de picardia. Num palco de máscaras sendo fantoche do dinheiro, do ódio e do
conformismo. Inutilia Truncat! Inutilia Truncat!
Despertai porque isto é a vida! Eu não posso te explicar com palavras todo o
resto, mas você e somente você poderá ver e assim entender. Despertai!’
O pobre jovem
burguês estava atordoado e exausto. Este encontro, este choque, este sonho fora
pesado demais. Ele se sentia como se acordasse em uma vida que não era a sua. O
seu dia não pode ser igual e ele ainda se perguntava o que tinha de real
naquelas memórias. De repente, enquanto caminhava pela rua, tem em sua frente a
mesma jovem da sua memória. Ela o olhou
e seguiu em frente.